HUMANIDADES DIGITAIS E JOGOS ELETRÔNICOS COMO MEIOS DE APRENDIZADO HISTÓRICO.
por Alex da Silva Martire
As Humanidades têm sua origem datada no século II d.C., com a obra Noites Áticas, do jurista, escritor e gramático romano Aulo Gélio. Em seu trabalho, Aulo Gélio diz que o termo latino humanitas não significava o que a maioria das pessoas pensava na época, ou seja, um sinônimo para a palavra grega φιλανθρωπία (filantropia); para Gélio, humanitas estava ligada ao termo παιδεία (paideia), representando a educação e formação nas artes liberais em voga durante o Império Romano. Segundo Aulo Gélio: “A busca desse tipo de conhecimento, e a formação dada por ele, foram concedidas, dentre todos os animais, ao homem apenas, e por isso são denominadas humanitas, ou ‘humanidade’” (Noites Áticas, XIII.17). Durante a Idade Média, principalmente na França e na Itália, esse sentido de educação nas artes liberais foi retomado, estudando-se as sete artes liberais, divididas em dois grupos de disciplinas: o trivium (com o objetivo de desenvolver a linguagem), englobando a Gramática, a Dialética (contraposição e contradição de ideias que levam a outras ideias), e a Retórica (a arte de usar uma linguagem para comunicar de forma eficaz e persuasiva); e o quadrivium (voltado ao estudo da matéria), abarcando a Aritmética (teoria dos números), a Música (aplicação da teoria dos números), a Geometria (teoria do espaço), e a Astronomia (aplicação da teoria do espaço). A educação (da classe comerciante) italiana nesse período, por exemplo, era fortemente prática, enfatizando a alfabetização vernácula, a matemática voltada aos negócios, a literatura secular (romances e aventuras violentas), a religião popular (biografias de santos e autoajuda espiritual), as habilidades retóricas e gramaticais envolvidas na oratória pública e na criação de legislação, documentos legais e contratos privados.
No fim do século XIII e início do XIV, no Renascimento, contudo, as comunas livres do norte da Itália (especialmente Florença) começaram a enfatizar um novo conjunto de currículo, principalmente sob influência do intelectual, poeta e humanista Francesco Petrarca (1304-1374), que enxergava a excelência na Antiguidade Clássica: foram acrescentadas às sete artes liberais a Filologia (o estudo rigoroso dos documentos escritos antigos e de sua transmissão), o estudo e escrita da Poesia, a História e a Filosofia moral. No século XV, os currículos das universidades europeias começaram a ser conhecidos como studia humanitatis (baseando-se no termo humanitas cunhado por Aulo Gélio, significando o aprendizado e instrução nas artes liberais a fim de se interpretar a evidência das vidas humanas, pensamentos e ações). Os estudantes das studia humanitatis eram conhecidos por humanistas. O termo moderno “Humanismo” (humanismus) só foi cunhado pelo filósofo alemão Friedrich Immanuel Niethammer em 1808 para fazer a distinção entre uma educação baseada puramente em habilidades específicas e a educação baseada nas buscas filosóficas, filológicas e literárias. No fim do século XIX e início do XX, principalmente nos EUA, começou a haver um distanciamento entre a educação universitária e as artes liberais, influenciadas pelo cientificismo do historiador Leopold von Ranke, tornando-se a primeira mais “objetiva”. Desse modo, por volta de 1920, os objetivos da pesquisa em Humanidades começaram a encontrar o rigor da Física e das Ciências Sociais, criando padrões sistemáticos e profissionalização, e afastando o Humanismo acadêmico de outrora do público de agora: começou a haver separação entre poeta e escritor de ficção, ensaísta e dramaturgo, artista visual e arquiteto etc. Esse novo Humanismo passou a ser encontrado em departamentos de História, Literatura, Letras Clássicas e Filosofia.
As Humanidades Digitais (HD), por sua vez, surgiram no contexto da computação digital, que obteve avanços significativos após a criação dos transistores em 1947 nos laboratórios da Bell Telephone, nos EUA. O primeiro trabalho de Humanidades com computação, ou seja, Humanidades Digitais, data de 1949, quando o jesuíta e teólogo italiano Roberto Busa procurou o fundador da IBM, Thomas J. Watson, requisitando ajuda para indexar os trabalhos de Tomás de Aquino. O pedido, contudo, não foi para contabilizar palavras, foi para conseguir “interpretação doutrinal”, ou seja, um trabalho qualitativo. O Index Thomisticus de Roberto Busa foi disponibilizado na Internet em 2005 para a consulta de qualquer pessoa (http://www.corpusthomisticum.org/it/index.age). As Humanidades Digitais atualmente tentam se aproximar do conceito original de Humanidades, usando, dessa vez, habilidades de comunicação modernas a fim de interpretar o que é ser humano e o que é ser um cidadão responsável na Era Digital. Uma busca simples pelo termo “Digital Humanities” em um site de pesquisa acadêmico como o banco de dados IEEE, aponta 87 trabalhos publicados entre os anos 2016 e 2017 sobre Humanidades Digitais . Essa área de pesquisa tem se fortalecido no âmbito acadêmico a cada ano que passa, mostrando que os humanistas estão se tornando mais cônscios do contexto digital em que atuam, e utilizando ferramentas digitais para facilitar a obtenção de dados, a sua análise e, por fim, a sua distribuição/publicação.
Sendo muito recente, as Humanidades Digitais ainda passam por debates sobre a sua conceituação, sobre aquilo que realmente é. Tomarei por base algumas ideias de Erik Champion em seu livro Critical Gaming: interactive History and Virtual Heritage (2015) que, ao meu ver, consegue não apenas convencer o leitor de que as Humanidades Digitais são uma área cognitiva relevante, como também transmite suas ideias de modo claro e didático.
Uma das preocupações centrais de Champion é combater a noção ainda muito presente de que as HD são principalmente “serviços computacionais aplicados à digitalização e processamento de texto e literatura” (CHAMPION 2015: 5). Pensada assim, as HD seriam representadas apenas por ferramentas digitais de análise textual (por exemplo, algum programa que fizesse uma relação de quantas vezes uma determinada rua é mencionada no calhamaço Ulisses de James Joyce e quais personagens transitaram por ela), ou, então, seriam os PDFs originados a partir do escaneamento de livros físicos. Erik Champion, no entanto, utiliza o primeiro capítulo de seu livro para questionar esse uso “tradicional” das HD e para afirmar que visualizações não baseadas em textos também podem ser levadas em consideração (e, muitas vezes, trazendo mais benefícios no campo do conhecimento). Mais: Champion lança uma questão interessante ao leitor (2015: 7) – por que grande parte das aplicações no campo das HD são baseadas em computadores desktop? Por que não podem ser também inseridas na Realidade Virtual ou demais ambientes não baseados em desktop? A resposta a essa pergunta, creio eu, deve-se mais às limitações de recursos financeiros por parte das universidades do que má vontade ou falta de capacidade dos pesquisadores: somente em 2016 é que a Realidade Virtual teve o seu boom, com o lançamento de diversos dispositivos (principalmente HMDs) a preços voltados ao consumidor final. Certamente até 2020 o uso da Realidade Virtual será algo comum para todos, tal como são os smartphones hoje em dia.
Champion segue seu capítulo com mais um apontamento com o qual eu concordo: ele diz que a predileção por material baseado em textos é limitadora quando queremos alcançar um público amplo (2015: 10). Segundo um relatório da UNESCO de 2014, citado pelo autor, embora 84% dos adultos ao redor do mundo saibam ler, ainda enfrentam dificuldades em interpretar textos. Somada essa questão aos 16% de adultos analfabetos, fica claro que nem sempre utilizar apenas textos em aplicações digitais pode ser a melhor solução para o que almejamos. Assim, se bem desenvolvida, uma aplicação de HD pode ser centrada em visualização não-textual e, ao mesmo tempo, contar uma história, gerando significados. Talvez o maior exemplo desse caso sejam os jogos (games). Para o autor (2015: 32), “um jogo é um desafio que oferece a possibilidade, temporária ou permanente, de resolução tática sem resultados prejudiciais ao mundo real do participante”. Um jogo também deve ter algumas regras que o participante/usuário deve conhecer para dar andamento à experiência a fim de completar seu objetivo principal. Porém, é importante ter em mente que o modo como um designer elabora um jogo é diferente do modo como um jogador o experiencia. Jogos vão além de modelos: são simulações. Como é sugerido por Champion (2010: 90), as simulações históricas deveriam alcançar os seguintes objetivos:
- Providenciar (a certo ponto da experiência) uma estrutura na qual o jogador (talvez “participante” seja uma palavra melhor) obtenha uma visão geral do que foi documentado, simulado e construído;
- Transmitir um sentido de contexto histórico e o modo no qual ele modelou as ações dos habitantes;
- Ajudar os participantes a entender e explicar a informação de uma forma que melhor se adapte a eles, e não ao designer, e permitir diferentes caminhos, ações e seleção de metas;
- Encorajar os participantes a buscarem mais informações para eles mesmos além da simulação histórica.
Jogos eletrônicos lidam com imersão (que é subjetiva, claro) e interação em tempo real (pois você controla as ações de seu personagem na tela). Desse modo, os jogos eletrônicos são, quantitativamente, os maiores responsáveis pela difusão da Realidade Virtual em nosso mundo atual. E O Último Banquete em Herculano insere-se nesse contexto.
› SCHREIBMAN, Susan, SIEMENS, Ray & UNSWORTH, John (eds.). A Companion to Digital Humanities. Malden: Blackwell, 2004.
› SCHREIBMAN, Susan, SIEMENS, Ray & UNSWORTH, John (eds.). A New Companion to Digital Humanities. Malden: Blackwell, 2016.
› GOLD, Matthew K. (ed.). Debates in the Digital Humanities. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.
›BUSA, Roberto. “The Annals of Humanities Computing: the Index thomisticus”. In: Computers and the Humanities, v.14, 1980, pp. 83-90.
› CHAMPION, Erik. Critical gaming: interactive history and virtual heritage. Surrey: Ashgate, 2015.
› MARINO, Vinicius. “History and human agency in videogames”. In: Gamevironments, v. 5, 2016, pp. 104-131.
Pode ser acessado aqui.
› MARINO, Vinicius. “Videogames as tools for Social Science History”. In: The Historian (Kingston), v. 79, 2017, pp. 794-819.
Pode ser acessado aqui.